Na segunda-feira 8 de abril de 2019, enquanto o governador João Doria, então recém empossado, comparecia à inauguração da estação Campo Belo, da Linha 5-Lilás, do Metrô, um documento era concluído pela Metra, concessionária responsável pela operação do Corredor ABD, um sistema de ônibus que opera no ABC Paulista desde o final do anos 80 e que foi assumido por ela em 1997.
Protocolado na Secretaria dos Transportes Metropolitanos no dia 10 de abril de 2019, o requerimento em questão, assinado por Maria Beatriz Setti Braga, propunha ao governo do estado a extensão do contrato de concessão, que vence em maio de 2022, e como compensação, trazia a implantação do “BRT ABC Paulista”, um novo corredor de ônibus que tomaria o lugar da Linha 18-Bronze, então ainda à espera de investimentos públicos para sair do papel.
Coincidentemente, durante a inauguração da estação da Linha 5, ao ser interpelado sobre o futuro da Linha 18, Doria admitiu que o governo tinha outros planos para a região, dois dias antes que a proposta da Metra chegasse à Secretaria dos Transportes Metropolitanos.
“Nós vamos modificar esse formato. Houve um erro ao nosso ver do governo que nos antecedeu. Mas entre ficar aqui apenas culpando o passado, vamos tratar de encontrar soluções para o presente e para o futuro. Nós teremos um outro formato que não vai exigir R$ 600 milhões de pagamento de indenizações por desapropriações“, cravou o tucano, sem ainda explicar do que se tratava o ‘novo formato’.

No entanto, sabe-se finalmente que o projeto do BRT ABC já era tratado entre a Metra e governo Doria nessa época graças ao processo que questiona a renovação do contrato com a concessionária, um pacote de R$ 22,6 bilhões que fará a empresa controlar todo o transporte intermunicipal do ABC até 2046.
A ação popular, que nesta terça-feira, 27, teve a liminar que impedia a execução do contrato revogada na Justiça, ao menos trouxe luz à todo o processo que culminou com a rescisão unilateral com a VEM ABC, responsável pela Linha 18-Bronze, e a consequente formatação dos decretos e aditivos que permitiram à Metra ampliar sua atuação na região do ABC Paulista.
A razão é que, dentre os documentos enviados pela Procuradoria Geral do Estado, órgão jurídico que faz a defesa perante à Justiça, está justamente a apresentação do projeto original do BRT pela Metra, incluindo o estudo funcional e conceitual do corredor.
Ela traz vários dos pontos repetidos à exaustão pelo governo Doria e pela Secretaria dos Transportes Metropolitanos, que endossaram a proposta de forma bastante alinhada, como se viu desde julho de 2019, quando o BRT foi anunciado.
Substituto da Linha 18-Bronze
Os argumentos da Metra para continuar à frente do negócio incluíram previsões alarmistas de uma possível descontinuidade dos serviços em caso de não renovação do contrato, alegações não comprovadas sobre o monotrilho e por fim inversões de valores ao atribuir ao BRT “potencial para provocar uma transformação positiva nas áreas de influência, como por exemplo, mudanças do uso e ocupação do solo, com instalação de novos empreendimentos incentivos(sic) pelo adensamento urbano ao longo da faixa do BRT“.
Trata-se, como se sabe, de um efeito creditado do transporte sobre trilhos e não aos corredores de ônibus, mais associados à degradação do entorno, como na avenida Santo Amaro, em São Paulo, ou nas regiões atendidas por esse tipo de modal no Rio de Janeiro.

Além da vantagem financeira, a Metra aponta como ponto forte do projeto o uso de “tecnologia nacional”, alegando que a origem de um equipamento é uma espécie de garantia de qualidade e não o escopo de projeto, fabricação e suporte, por exemplo.
A concessionária aproveitou também para enumerar aspectos supostamente negativos do monotrilho como falta de crédito do estado (desde então resolvido), vencimento do prazo dos decretos de desapropriação (que já voltaram a ser permitidos) e até a saída da Scomi como fornecedora da VEM ABC – a fabricante de monotrilhos malaia faliu, mas foi substituída pela BYD na Linha 17, um projeto semelhante.

Mesmo sob risco de ver a aprovação da extensão do contrato não sensibilizar o governo em tese, a Metra ressaltou que estava “desenvolvendo estudos acerca da vantajosidade do Projeto apresentado”, mas que esperava que a Secretaria dos Transportes Metropolitanos conduzisse o processo de prorrogação, no qual ficaria à disposição.
Além de contestar a validade do projeto da VEM ABC, a empresa faz uma citação textual do BRT como substituto do monotrilho: “com diretriz semelhante à da Linha 18 – Bronze do Metrô”, diz o documento que trouxe as primeiras informações sobre o corredor. O secretário Baldy tem insistido na tese de que a contratação de um projeto não tem relação com o cancelamento do outro.

Sem melhorias no Corredor ABD
Por outro lado, a proposta da Metra não faz referência a melhorias no Corredor ABD, algo comum em renovações de contrato de concessão semelhantes.
A concessionária tão e somente ofereceu a construção e operação do BRT ABC no lugar da Linha 18-Bronze e que seu contrato fosse estendido de forma a recuperar os investimentos no projeto, orçado por ela em R$ 658,2 milhões na época.
Também não aparece no texto a futura assunção da Área 5 de linhas intermunicipais. No fim, tanto essas linhas de ônibus quanto algumas metas de melhorias no Corredor ABD foram acrescentadas durante as negociações com o governo, criando um caráter mais integrado à proposta.
A apresentação do BRT ABC, entretanto, aborda vagamente os aspectos técnicos do projeto. Em vez disso, faz uso de frases de efeito com frequência como “o conceito BRT oferece potencial para revolucionar a forma do transporte urbano” ou “um conjunto de mudanças que formam um novo conceito de mobilidade urbana”, entre outros.
A peça também garantiu que sua implantação irá gerar ganhos operacionais ao oferecer uma velocidade média de 25 km/h e que o sistema viário será revisto e melhorado, “proporcionando um ganho também para o sistema de tráfego geral”.
Torna-se pouco claro compreender como será possível melhorar as vias se o projeto irá reduzir as faixas para os demais veículos e instalar semáforos que dão preferência ao ônibus.

Serviço expresso não incluído
As poucas informações concretas à época envolviam a quantidade de ônibus a serem usados (116 veículos) e à implantação de dois serviços, o parador e o semi-expresso. Nenhuma menção foi feita ao serviço expresso, que passou a fazer parte do projeto mais tarde, com previsão de trajeto em 40 minutos, ou cerca de 13 minutos a mais que a Linha 18.
Mesmo o serviço parador e o semi-expresso foram apresentados apenas com a velocidade média estimada de 25 km/h e 32 km/h, respectivamente, para uma extensão aproximada de 15 km.
Comparado aos dados apresentados por Doria em maio deste ano, os números reais se tornaram bem mais modestos em todos os sentidos em relação às promessas da Metra. Veja abaixo a comparação:
Escopo | Proposta da Metra em 2019 | Projeto apresentado pelo governo em 2021 |
Extensão do corredor | 15 km | 17 km |
Frota de ônibus | 116 | 82 |
Velocidade média (expresso) | não incluído | 25 km/h |
Velocidade média (semi-expresso) | 32 km/h | 23 km/h |
Velocidade média (parador) | 25 km/h | 19 km/h |
Capacidade de passageiros/dia | 300 mil usuários/dia | 115 mil usuários/dia |
Custo estimado do projeto | R$ 658,2 milhões | R$ 859 milhões |
A Metra faz apenas uma referência à capacidade do corredor BRT. Segundo uma tabela (abaixo), o projeto poderia transportar 300 mil pessoas por dia. Meses depois, quando anunciou o “novo plano de mobilidade para o ABC”, em julho daquele ano, o governo Doria afirmou que “O BRT…tem capacidade para transportar até 340 mil passageiros por dia”.
Na realidade, o corredor terá uma capacidade bem menor, de apenas 115 mil usuários diariamente, conforme anunciado pelo próprio governo neste ano.
A Metra se propôs a detalhar a proposta caso o governo desse início às discussões para prorrogação do contrato pelo estado, baseada numa lei estadual de janeiro de 2019 que abriu em tese essa possibilidade.

Promessas de apresentação do projeto do BRT
Entre o anúncio do BRT ABC e a apresentação formal do projeto, em maio deste ano, passaram-se cerca de 20 meses em que o governo Doria pouco falou sobre ele. Além da declarações esparsas, foram várias promessas de detalhar o conceito, tanto à opinião pública quanto aos próprios municípios da região e à imprensa.

O argumento usado foi o de que o projeto estava sendo desenvolvido, mas nenhuma menção ao envolvimento da Metra. A concessionária só apareceu ligada ao projeto quando um documento de metas da EMTU, empresa que gerencia as linhas intermunicipais de ônibus no estado, relatou o fato em janeiro do ano passado.
Enquanto reinava o silêncio na administração pública, várias áreas do governo Doria discutiam como justificar a prorrogação do contrato com a Metra, como reconheceu a própria Procuradoria Geral do Estado em sua defesa no processo em curso na Justiça. E que só vieram à tona no final de 2020 quando o assunto foi abordado nas reuniões dos conselhos de Desestatização e Parcerias Público-Privadas do governo.

Opinião do editor
A pergunta que precisa ser respondida é: se a renovação com a Metra, com a inclusão de outras áreas fora do contrato do Corredor ABD, é de fato legal, como garante o governo Doria, por que tamanha falta de transparência com um assunto tão importante?