O Brasil vive um grave e antigo problema na área de transporte público e ele se chama “calendário eleitoral”. Projetos de mobilidade quase não obedecem ao planejamento de equipes técnicas, mas sim conveniências partidárias e eleitorais. Prazos não são pensados em benefício da sociedade, mas em se encaixar em campanhas eleitorais que, aliás, andam começando bem mais cedo, logo que novos mandatários tomam posse.
O teatro que o governador João Doria e sua equipe, além dos prefeitos do ABC, protagonizaram nesta quarta-feira (03) exemplifica bem essa situação. Anos de planejamento para implantar a Linha 18-Bronze foram jogados literalmente no lixo em prol de promessas vazias e cuidadosamente moldadas para soarem factíveis. Em comum, elas agradam a ouvidos incautos porque renovam esperanças já perdidas como a de ver o metrô finalmente chegar à região do ABC. Nada mais falso.
Doria até resgatou uma falácia que a gestão Serra se cansou de usar e que, como vemos hoje, não se concretizou, o tal “padrão metrô”. Na gestão do ex-governador planos mirabolantes brotaram como que por encanto e previam que a rede se expandisse e se modernizasse em apenas cinco anos.
Foi a época do malfadado plano “Expansão SP”, que contou com pesados investimentos em marketing que incluíram até mesmo a gravação de um comercial de TV em que um trem do Metrô foi rebocado até a estação da Luz da CPTM, algo que não acontece na “vida real”. O governo Serra chamou o plano de “revolucionário”, prometeu que todos os trens teriam a “qualidade de metrô” e claro, que os prazos seriam extremamente curtos.
Um dos comerciais da época chegava a ser cômico ao afirmar que a “Ana”, personagem fictício que morava em São Mateus, conseguiria ir direto até a avenida Paulista graças à então Linha 2-Verde em seu trecho de monotrilho, isso no mais tardar em 2013. Como se sabe a estação São Mateus da agora Linha 15-Prata só deve ficar pronta no final de 2019, seis anos depois da promessa do tucano.

Promessa
Ao afirmar que o ABC “ganhou duas linhas de metrô” e um BRT, o governador duvidou da inteligência dos paulistas assim como havia feito em setembro do ano passado ao discursar em São Bernardo durante a campanha eleitoral e dizer que “a Linha 18 do Metrô vem sim para o ABC. É compromisso“.
Em vez disso, cancelou um projeto já encaminhado (não sem distorcer números para justificar a atitude) e criou duas linhas de “metrô” cuja perspectiva está distante. Melhorar o serviço da Linha 10-Turquesa requer licitações, recursos, projetos e intervenções na operação e por isso não acontecem de um dia para o outro. A única medida ao alcance da ansiedade do governador é a troca dos trens que, em que pese tantos absurdos ditos recentemente, foi uma ação sensata que seus antecessores não tiveram coragem de tomar.
Não se sabe, no entanto, a que preço Doria teria convencido a CAF a abrir mão do contrato que tem com o estado para ceder parte da sua frota na Linha 8 e permitir que as trocas ocorram – a não ser que as composições venham de outras linhas, o que parece difícil.
Já sobre a Linha 20-Rosa, cujo uso político prevemos na nota publicada antes da coletiva, o anúncio foi ainda mais fantasioso. O prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando, inclusive até revelou na entrevista que o secretário Baldy havia dito a ele que com o tempo em que seria feita a Linha 18-Bronze seria possível construir a Linha 20-Rosa. Coisa de “quatro ou cinco anos”, disse.
Para quem não sabe, a Linha 20 não passa de um esboço, sem projeto e cuja traçado e estações não estão ainda definidos. Quando diz que o governador autorizou projetos para o ramal de metrô subterrâneo, Baldy dará luz verde para que as coisas comecem praticamente do zero – até porque o trecho que estava, digamos, mais “maduro” era justamente o que vai da estação São Judas até a Lapa e não a parte do ABC.

“Na volta a gente compra”
O que estava em jogo na mobilidade da região não era o melhor transporte, o sistema com mais potencial ou uma requalificação do espaço urbano. Esses aspectos não condizem com o famoso calendário eleitoral. Nesse cenário político, obra boa é que a fica pronta dentro do mandato e nesse sentido os projetos metroferroviários são uma espécie de cruz que vampiros têm de lidar. Levam tempo, consomem enormes recursos e são complexos. De quebra, exigem projetos, licenças e desapropriações custosas e com isso demoram demais. É ter de pensar em um retorno político muito distante e que invariavelmente beneficia muitas vezes os adversários.
Nesse cenário nada como um BRT para chamar de seu. A popularidade do corredor de ônibus é proporcional à falta de planejamento e visão de longo prazo do mandatário. Foram os BRTs que “salvaram” a mobilidade urbana do Rio de Janeiro enquanto a Linha 4, um projeto caríssimo e suspeito, tem sofrido para atrair passageiros – o ramal mal chega a 200 mil usuários por dia. Hoje o serviço de ônibus, elogiado à época dos Jogos Olímpicos em 2016, apresenta sinais de desgaste e queda na qualidade do serviço.
Mas isso pouco importa afinal é uma obra de curto prazo, que levará apenas 18 meses para ser construída, prometeu o secretário Baldy. Mesmo que atrase um pouco ainda dá tempo de Doria inaugurá-la seja lá o que será essa “criatura” que percorrerá o mesmo trajeto do monotrilho, aquele que exige R$ 600 milhões em desapropriações. Ah, sim, mas a Linha 18 precisa de mais espaço para as estações, dirão alguns. Mas um corredor com pistas expressas também não exige grandes intervenções?
Até lá, a ideia é distrair a população com as “duas linhas de metrô”, afirmação que até confundiu a grande imprensa, geralmente não atenta a alguns detalhes técnicos. Houve quem tivesse entendido que a CPTM repassaria para o Metrô a operação da Linha 10-Turquesa, por exemplo, algo sem pé nem cabeça. Bem, melhor tomar cuidado com o que afirmamos nesta gestão.
Quanto à Linha 20, algumas sondagens e belas projeções artísticas devem ser suficientes para tentar iludir o público que, mais uma vez, vai sonhar com o metrô por muitos e muitos anos. Afinal de contas, obras desse porte não são como ações de zeladoria como pintar o meio fio ou promover uma varrição em ruas.
A melhor definição sobre os anúncios da “nova solução de mobilidade no ABC Paulista”, como definiu o governo, foi dada por um participante de um fórum de transporte sobre trilhos. Doria está apelando para “o famoso ‘na volta a gente compra‘, que as mães usam pra tapear crianças por gerações”, disse o internauta. “Na volta a gente constrói a linha 20, povo do ABC”.
